segunda-feira, 31 de maio de 2010

Negação

É tão difícil assim? Queria poder não falar de sentimentos. Nem tudo que falamos são de sentimentos. Será que sentimos o tempo todo? Droga. Acabo de sentir uma dúvida, uma inquietação. Ponto e vírgula, faz favor;

Quero falar do momento em que abri a janela da varanda e encostei-me na porta de vidro com bordas de alumínio para descobrir a garoa que estava enfeitando a noite. No asfalto, no morro, nas casas de alvenaria, nas coberturas socio-amigáveis. Bisbilhotei a vizinha do prédio caçula da frente espreguiçando, pelo vício da tela do computador. Luz acesa, vejo tudo, energia desperdiçada, não para mim.

O barro enxarcado pelas chuvas de abril apodrece em meio da vila. Uma vila onde tudo acontece. Uma vila onde uma senhora bem idosa escala os seus duzentos lances de escadas em uma velocidade alucinantemente penosa, com sua namorada, a fiel bengala preta. A garoa sai à francesa, deixa a poça refletir o ponto de luz do respeitoso poste.

Nem tudo é pacato. Sirenes desesperadas lembram de onde estamos. Ecoam perenes diante os prédios que fazem o corredor do desespero. - Não falo do meu coração. Não quero falar dele. - Elas também saem à francesa. Milagrosamente o desespero cessou. Só vejo ônibus com dezenas pessoas loucas. Loucas para findar em suas residências. Loucas para esquecer o primeiro dia de trabalho/estudo da semana. Será que os que possuem sanidade andam de carro?

Por um momento ouço o silêncio. Vejo as luzes da favela ao longe piscarem como se fosse natal. Como se houvesse uma comunicação à la código morse. Pura ilusão. - Não falo do meu coração. Não quero falar dele. - De ótica. Meus olhos nem sempre vêem o que é pra ser visto. Talvez ele não queira ver o mendigo em posição escatológica. Meus olhos estão blindados. - Não falo do me...

A temperatura do vento que bate lembra o ar-condicionado do verão. Faz as árvores iluminadas parecerem as únicas almas vivas que resistem à hora, ao tempo, no tempo delas, na beleza delas. Mania de prédios cultivarem as palmeiras. Cadê a mangueira? Elas dão frutos. Sinto falta agora dos morcegos. Meus companheiros das noites de olheiras.

Os ônibus também saíram à francesa. Pessoas perambulam no meio da faixa de mão dupla. - Não falo do meu coração. Não quero falar dele. - Os sons dos carros relaxam, o cristo redentor ao fundo usa cobertor branco e o pão de açúcar parece adormecido. A paisagem ficou estática e posso pegar o pincel amarelo a vontade. Se eu falar mais do que isto parecerei triste e sozinho.

- Não falo do meu coração. Não quero falar dele. -

2 comentários:

Julia Maria disse...

As pessoas falam das coisas banais pra esconder o que sentem de verdade. O vazio. Do qual muitas vezes não sabemos nem como falar. O medo de parecermos mais vulneráveis.
Achei brilhante a forma que vc abordou isso. Mas não gosto desse tema! hahahahaha!!

Clarissa de Andrade Correa disse...

Gostei muito. Muito lindo! Eu gosto desse tema! HA!
Muito bonito, viajei nas pequenas historinhas.